As estruturas improvisadas bem na área central do município escancaram um problema social antigo e complexo

Barracos de lona e madeira reapareceram habitados em pontos no centro de Campos, expondo o desafio ainda enfrentado diante da população em situação de rua. As construções improvisadas, vistas nas proximidades da Ponte Saturnino de Brito e também no Cais da Lapa, levantam novas discussões sobre uma situação antiga e complexa.


Na descida da ponte, sentido Centro, o cenário é coletivo. A reportagem esteve no local na última segunda-feira (8) e observou um grupo de cinco pessoas na parte de fora dos barracos de madeira, reunidos em meio a pequenos fogareiros e pedras improvisadas como bancos. O espaço, já conhecido como ponto de concentração de pessoas em situação de rua, transformou-se numa espécie de comunidade temporária em meio à precariedade.
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1º Momento – 02/08/24 -
2º Momento – 14/11/24


Segundo um trabalhador que atua no bairro, a situação no local não é de agora: “Tem pelo menos dez anos que vemos gente morando nesse lugar. Alguns ficam pouco tempo, outros acabam permanecendo, mas não muda”, relatou. O fluxo é constante: gente que chega, gente que parte, mas os vestígios permanecem.


A alguns bons metros dali, o contraste: no Cais da Lapa, um único abrigo chama a atenção. Com duas barracas de acampamento, lona preta, colchões gastos, uma espécie de fogão improvisado e roupas de cama estendidas em cordas amarradas de um lado da árvore a outro, ocupa um espaço, a poucos metros do leito do Rio Paraíba, de maneira quase discreta, mas não passa despercebido por quem transita diariamente pela região.
Dentro dele vive o casal Ana Nobre e Vítor, que improvisou móveis, montou uma cama com um colchão fino e guardou seus poucos pertences em sacolas plásticas. Do lado de fora, sinais de que ali se toma banho e prepara comida diariamente.


A diferença entre os dois espaços evidencia nuances do mesmo caso. Enquanto na ponte o caráter coletivo prevalece, com vários ocupantes dividindo um mesmo território, no Cais, o barraco do casal simboliza a tentativa de criar, de forma frágil e precária, uma vida privada em meio ao espaço público.
Despejos e sensação de violência
Em meio à rotina invisível para muitos, a história do “casal do Cais da Lapa” chama a atenção. Ana e Vítor, acompanhados pelo J3News há mais de um ano, simbolizam a complexidade do tema. Juntos há 16 anos, vivem em barracos improvisados, entre idas e vindas, em diferentes áreas da cidade. Citam uma dificuldade de acesso a políticas públicas.
“Já veio assistente social aqui, conversamos sobre aluguel social e disseram que não tinha verba. Quando tivesse, nos colocariam. Mas até hoje não deu entrada. No Centro Pop falam que não tem mais vaga. E quando tem, muita gente arruma confusão porque está drogado, bêbado, querendo brigar com todo mundo. O convívio não vale a pena, e ainda tenho que cuidar da Ana”, relata Vítor, enquanto mostrava a estrutura improvisada às margens do Paraíba.
Para Ana, o problema não é apenas a falta de políticas habitacionais, mas também a forma como as ações de retirada são conduzidas. “Da última vez que nos tiraram daqui, nos despejaram e não deram solução. Jogaram minhas coisas fora, quase me enrolaram junto da barraca para sair. Vieram vários carros de polícia, falando alto, agressivos”, conta.
Ana usa somente cadeira de rodas para se locomover e depende de cuidados especiais, e sobrevive vendendo balas nos semáforos. Vítor, reciclador, diz que a renda mal cobre as despesas básicas. Ambos contam também com um benefício do governo municipal. Apesar da dureza, ela insiste em manter alguma esperança; já Vítor parece desacreditar: “Eu hoje só me preocupo em cuidar de mim e da minha esposa. A gente se vira como dá, de vez em quando aparecem outros aqui e tentamos ajudar. Ela vendendo bala, eu catando reciclável. Temos o vale de R$ 200 do governo, e assim seguimos”, afirma.


Políticas públicas
Se por um lado os relatos apresentam dificuldade de acesso aos serviços, de outro a Prefeitura afirma que as equipes de assistência social realizam diariamente abordagens com a população em situação de rua. Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania (SMASC) informou que o município dispõe de quatro abrigos municipais — Manoel Cartucho, Casa de Passagem, Lar Cidadão e uma Organização da Sociedade Civil (OSC) cofinanciada — e que cabe ao indivíduo aceitar ou não o encaminhamento.
De acordo com a Prefeitura, além de vagas em acolhimento, são oferecidos serviços como retirada de documentos, cuidados de saúde e passagens para retorno à cidade de origem. Dados oficiais mostram que entre janeiro e agosto de 2025, 45 pessoas pediram apoio para regressar a municípios como Macaé, Italva e Cachoeiro de Itapemirim (ES).
O último levantamento oficial da população em situação de rua foi realizado em 2022, quando o primeiro Censo da Prefeitura identificou entre 122 e 130 pessoas nessa condição em Campos. Três anos depois, segundo estimativas da doutora em Serviço Social, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Leda Barros, o número permanece estável, em torno de 130 a 132, incluindo aqueles institucionalizados.
Estrutura limitada e raízes profundas
Leda Barros afirma que a questão vai além da oferta de vagas e aponta os principais gargalos que impedem que as políticas públicas cheguem de forma mais efetiva à esse público.


“As instituições de acolhimento integram um sistema de proteção social especial de alta complexidade. Essa questão de vagas em instituições para pessoas adultas em situação de rua que não são, formalmente, instituições de longa permanência, requer alguns importantes apontamentos, com vistas à compreensão sobre o que são de fato e de direito esse sistema institucional implantado no Brasil, que não se equivalem ao formato clássico de ‘albergues’, um sistema que é voltado ao acolhimento na perspectiva das situações e condições sociais que apresentam ser tratadas e minimizadas em suas raízes e origens. Quando as condições sociais são tratadas sem que suas raízes sejam tocadas, há sempre um vácuo entre a demanda e a capacidade institucional”, afirma.
“Projetos com geração de emprego e renda, inclusão habitacional, combate à dependência química e inserção educacional são fundamentais para as portas de saída”, completa.
Leda também aborda a forma como a sociedade enxerga a população em situação de rua. “A invisibilidade caminha junto da visibilidade, quando interessa aos sistemas. Muitas vezes, essas pessoas são criminalizadas e sofrem opressão institucional, seja com a retirada de seus pertences ou até com agressões. Há preconceito e banalização da sua existência, algo que nos remonta à antiguidade”, afirma.
Ela defende que a discussão sobre espaço urbano precisa ser equilibrada com a garantia de direitos humanos. “É preciso que seja tratado enquanto uma relação social importante na perspectiva dos direitos à cidade e ao campo ao sujeito trabalhador, tratando com respostas incisivas as principais razões que levam essas pessoas à condição de situação de rua. As portas de saídas das ruas requerem múltiplas ações das políticas públicas brasileiras, com muito foco em ações intersetoriais das políticas de saúde, habitacional, geração de emprego e renda, educacional, entre outros”, finaliza.
Enquanto relatos como o de Ana e Vítor expõem fragilidades no atendimento, o poder público afirma que os serviços estão disponíveis. A diferença entre as versões mostra que o fato concreto permanece: pessoas continuam vivendo nas ruas de Campos.